ACESSO À INFORMAÇÃO PARA QUEM?

Surdos enfrentam dificuldades para acompanhar notícias
Renata Rocha
 
 

Em janeiro deste ano, o rompimento da barragem com rejeitos de mineração em Brumadinho, Minas Gerais, mobilizou todos os veículos de comunicação. Do mais simples portal às maiores emissoras de televisão, o crime ambiental foi noticiado incessantemente em todo país desde o primeiro momento. A maioria deles, porém, sem a acessibilidade comunicativa necessária. O empresário surdo Felipe Barros inicialmente só conseguiu fazer uma avaliação visual da situação, sem mais detalhes. “Eu vi o que aconteceu, mas qual foi o motivo que originou aquilo? Não foi possível acompanhar ao vivo porque não tinha intérprete. A gente fica sabendo por último e recebe as informações sempre atrasadas, até alguém explicar”, sublinha.

A auxiliar administrativa Regiane Pereira, usuária da Língua Brasileira de Sinais (Libras), também enfrentou dificuldades para entender o ocorrido. Estava no trabalho quando foi surpreendida com várias mensagens no celular avisando sobre o crime. “Na hora de ir embora, logo pedi para a minha família me explicar as coisas. Não sabia se era nova a barragem ou a do passado [Mariana] e se tinha morrido alguém, fiquei triste e apreensiva. Meu tio foi me mandando fotos para tentar conseguir essa comunicação comigo”, lembra. Ela deixa claro que a forma de entender os fatos é visual e um pouco diferente da do ouvinte. “Vi que era muita lama, o pessoal de roupa suja se ajudando e várias mortes confirmadas. Eu sinto muito por isso. No massacre de Suzano me falaram da mesma forma. São as pessoas que vão me passando as informações, principalmente minha família. Os outros que me contam as notícias”, ressalta.

Já o coordenador social da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) Minas Gerais, Ademar Alves, conseguiu entender melhor o acontecido e até explicar para as outras pessoas com deficiência auditiva. Ele fez desenhos no quadro para mostrar o que realmente estava se passando, além de algumas chamadas de vídeo. “Quando aconteceu a tragédia, gente de vários estados já me mandou mensagem pedindo ajuda. Os outros surdos sabem que eu entendo do assunto, então vieram direto me procurar. Expliquei detalhadamente para eles usando todas as ferramentas possíveis”, relembra o arquiteto por formação, que já trabalhou com mineradoras.

Ademar também conta que faz parte de um grupo no WhatsApp específico de informações para surdos em Belo Horizonte e que cada região do país tem o seu. “O objetivo é passar informações e existem regras. Se o surdo lê e fala que não entendeu um acidente, por exemplo, quem conhece melhor o tema em questão pode adaptar um vídeo em Libras e enviar para ajudar. Às vezes, marcamos encontros em bares para conversar e compreender melhor as coisas”, relata.

Ademar Alves, coordenador social da Feneis, na sede de MG (Foto: Renata Rocha)

A pessoa surda é sobretudo visual, realizando leituras dos fatos predominantemente – e, muitas vezes, unicamente – por meio das imagens veiculadas nas diferentes mídias, de acordo com o professor e intérprete do Campus Palhoça Bilíngue do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Renato Calixto. “Os detalhes do acontecimento como causas, implicações, consequências e as análises e desdobramentos de diversas naturezas não são acessados por eles, uma vez que não são publicitados em língua de sinais”, reforça.

A professora, jornalista e doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sônia Pessoa, concorda e questiona se a comunidade surda realmente consegue acompanhar em detalhes um caso como Brumadinho. “É um acontecimento de magnitude tal que para qualquer um de nós leitores, espectadores, usuários de redes sociais digitais é algo muito difícil. E com o acesso à informação limitado por ferramentas não disponíveis, então o desafio é muito maior”, complementa.

O acesso à informação por todo cidadão é direito fundamental garantido pela Constituição da República de 1988, no inciso XIV do artigo 5º. É também defendido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no artigo 19° da Declaração Universal de Direitos Humanos. A Libras foi reconhecida como segunda língua oficial do Brasil em 2002, conforme a lei nº 10.436, regulamentada três anos depois pelo Decreto nº 5.626/05. Somente em 2015, na Lei Brasileira de Inclusão, o artigo 67 determina que “os serviços de radiodifusão de sons e imagens devem permitir o uso dos seguintes recursos, entre outros: subtitulação por meio de legenda oculta; janela com intérprete da Libras; audiodescrição”.

Ou seja, a acessibilidade comunicativa pode ser disponibilizada, sendo obrigatória apenas em horário político e campanhas institucionais do governo e de utilidade pública. “Em nosso país, criar leis não é um problema, o problema é efetivarmos sua aplicação e operação no cotidiano. De um modo geral, a comunidade surda está minimamente resguardada com a legislação vigente, mas aí entra uma grande lacuna que diz respeito ao não-cumprimento dessas leis, o que torna muito difícil o dia a dia dos surdos”, destaca a professora Sônia.

Além de doutora em Estudos Linguísticos, Sônia Pessoa é autora do livro Imaginários sociodiscursivos sobre a deficiência: experiências e partilhas (Foto: arquivo pessoal)

Desafios começam na escola e vão até o ensino superior

A falta de acesso à informação traz impactos negativos para o surdo desde a sua vida estudantil, de acordo com o professor Renato. “A lacuna na acessibilidade da mais tenra idade à vida adulta faz com que o conhecimento de mundo e enciclopédico da pessoa fique bastante restrito, impossibilitando-a de ler a realidade que a cerca, desde os assuntos mais corriqueiros aos mais complexos. Principalmente relacionados à nossa cidadania”, pontua. Para ele, um exemplo prático desse prejuízo é a dificuldade que os surdos enfrentam para realizar uma prova como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Mesmo tendo sido recentemente traduzida para a Libras, exige dos candidatos ciência dos acontecimentos da contemporaneidade, ainda mais na produção da prova discursiva. Além da dificuldade com a Língua Portuguesa, há, ainda, a falta de referências para as temáticas problematizadas pelos temas das redações”, salienta.

Regiane Pereira faz seu sinal em língua de sinais, enquanto a intérprete Sabrina Rocha mostra sua tatuagem que a identifica como "acessível em Libras" (Foto: Renata Rocha)

Atualmente, Regiane é acompanhada pela intérprete Sabrina em todas as suas aulas na faculdade de Administração, mas precisou explicar a importância desse tipo de profissional ao fazer a solicitação na secretaria. “Tive dificuldade de comunicação e deixei claro que disponibilizar um intérprete era responsabilidade deles. No primeiro momento não tinha e era complicado, agora está melhor. Mas nas provas só posso pedir ajuda em caso de dúvidas; seria muito melhor se fosse diretamente em Libras e eu só respondesse, já que sei pouco o português. Isso interfere no meu processamento de ideias para responder as perguntas”, relata.

Acerca da falta de acessibilidade comunicativa na mídia, ela pede para dar um recado: “Às vezes, minha mãe vem me falar de algum acidente ou morte e eu tomo até um susto. É muito importante recebermos as informações. A TV deve ter essa consciência com o surdo. Precisamos chegar em casa no fim do dia, assistir ao jornal e entender assim como o ouvinte. E, principalmente, conseguir discutir sobre as notícias”.

Embora a Primeira-dama do Brasil Michelle Bolsonaro se autodeclare intérprete de Libras, o presidente Jair Messias Bolsonaro (PSL) decretou o fim do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) em abril. Criado em 1999, foi um passo significativo na luta diária dessas pessoas, muito além do ponto de vista da fiscalização, de acordo com a professora Sônia Pessoa. “Considero a extinção do Conade um grande retrocesso na própria discussão, reflexão e avanços necessários para a política nacional da inclusão da pessoa com deficiência”, protesta. Para ela, significa acentuar uma vigilância já precária, fechando os olhos para uma pauta tão importante e prioritária. “Em pleno 2019, é lamentável e me parece inconcebível; um verdadeiro desrespeito aos direitos humanos da pessoa com deficiência. Espero que essa situação seja revista”, finaliza.

Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, 9,7 milhões de pessoas declaram ter alguma dificuldade auditiva. Ou seja, cerca de 5,1% da população brasileira enfrenta barreiras para se comunicar e receber informações básicas diariamente. A necessidade de inclusão é urgente, mas as mudanças e melhorias ao longo dos anos ainda muito lentas. “O Brasil é bem atrasado, nem o próprio filme nacional tem legenda para a gente. Antigamente não havia acessibilidade nenhuma, agora com a tecnologia está um pouco melhor, mas ainda falta muito. Na França, por exemplo, a televisão se mostra muito mais preocupada em ser acessível”, critica Ademar Alves.

O professor Renato compartilha da mesma opinião, salientando que há pouco movimento das empresas de comunicação na oferta da acessibilidade linguística às pessoas surdas. “A situação se torna mais complexa, ainda, pelo fato de não haver fiscalização e exigência do cumprimento das prerrogativas legais acerca do tema. O que pode ser melhorado é a ampliação do escopo de programas que disponibilizam a janela com a interpretação em Libras. Por vezes, apenas as TVs dos poderes executivo, legislativo e judiciário oferecem o conteúdo veiculado em língua de sinais”, aponta.

O maior telejornal brasileiro da atualidade, por exemplo, até hoje não possui acessibilidade comunicativa. O Jornal Nacional disponibiliza apenas o closed caption, também conhecido como legenda oculta (em tempo real), nos aparelhos com o devido decodificador. É importante lembrar que a língua materna do surdo é Libras, não o português. Nem todas as pessoas com deficiência auditiva têm um bom domínio da Língua Portuguesa, já que é considerada seu segundo idioma. “Não tenho afinidade com o português, é uma língua muito difícil e pesada, diferente dos sinais que facilitam nossa comunicação. A legenda oculta é muito rápida e complicada de entender, precisaria pelo menos ser um pouco maior e mais devagar. É ruim? Sim, mas prefiro saber o que está acontecendo do que não compreender nada”, pontua a auxiliar administrativa Regiane Pereira.

Apesar de fazer leitura labial, o comediante e ator surdo Tales Douglas também encara desafios em relação ao português. “É impossível substituir a Libras pela Língua Portuguesa. Sempre me esforço bastante, mas minha maior dificuldade é na questão dos verbos: passado, presente e futuro”, relata. Há uma diferença estrutural entre as duas línguas, sendo o português oral-auditivo e a Libras viso-espacial. O professor Renato Calixto esclarece que, por conta dessa grande distinção, ainda é incomum encontrar pessoas surdas que sejam leitoras proficientes na Língua Portuguesa. “O closed caption atende às necessidades específicas de pessoas com deficiência auditiva e/ou ensurdecidas que têm memória auditiva e, portanto, maior familiaridade com o português”, ressalta.

Tales Douglas em uma apresentação de seu stand-up comedy em Libras, na PUC Minas (Foto: Caio Gomes - Lab Foto FCA)

A Língua Brasileira de Sinais é um dos fatores mais importantes para a comunidade surda, sobretudo na questão da acessibilidade comunicativa. A janela de Libras traz uma interpretação coerente das informações transmitidas, sendo a opção ideal para que os fatos sejam compreendidos. Ainda pouco oferecida no jornalismo brasileiro, quando disponibilizada, às vezes é tão pequena e fora dos padrões que o surdo não consegue entender a notícia. Para estabelecer o modelo correto de acessibilidade televisiva no país, existem as regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como a NBR 15290:2016. Seu objetivo é “garantir o direito de acesso à informação pelas pessoas com deficiência auditiva, visual e cognitiva, apontando a implantação de recursos, na totalidade da programação de todas as emissoras”. Todas as diretrizes para a produção da janela de Libras e a legendagem são determinadas pela ABNT, porém, nem sempre respeitadas.

A janela de Libras ideal

ABNT NBR 15290:2016


Arte: Victor Cabral - Fonte: Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

Ao ser questionado sobre o assunto, o empresário Felipe Barros queixa-se da janela de Libras muito pequena e informa que, diversas vezes, o surdo acaba desistindo de entender. “Precisamos de uma janela maior, até dói o pescoço porque ficamos inclinados para enxergar, chega a ser desconfortável”, pontua. Ademar também reivindica que as regras sejam sempre seguidas e o próprio intérprete tenha consciência para contribuir com sua parte. “O quadrado precisa ser na medida certa e sem cortes. O ideal seria prender o cabelo, usar blusa preta e prestar atenção no contraste da pele com o fundo. Unhas vermelhas, relógios e tiaras também prejudicam nossa atenção. Quanto mais neutro, melhor”, avalia.

Mais um ponto relevante é o lag time ou tempo de atraso, comum em processos tradutórios e interpretativos, de acordo com o professor Renato Calixto. “Além do tamanho inadequado da janela, acelera-se a sinalização do intérprete com o objetivo de acompanhar o restante do texto falado ou imagético, impossibilitando que o usuário de Libras compreenda o que é apresentado”, sublinha. Outro aspecto a ser observado é a fluência do intérprete de Língua Brasileira de Sinais e sua formação, que deve ser reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC).

Professor Renato Calixto faz o sinal de "lei" em sua aula (Foto: Marcelo de Freitas - IFSC)

Enquanto a ABNT NBR 15290:2016 orienta sobre captação, edição e exibição, a Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais (Febrapils) regulamenta a atuação do tradutor, intérprete e guia-intérprete de Libras e Língua Portuguesa em materiais audiovisuais televisivos e virtuais. “Nossa nota técnica em parceria com a Feneis reforça e complementa as normas da ABNT. Encaminhamos ao Supremo Tribunal Eleitoral e instituições públicas. Apesar de não sermos fiscalizadores diretos, acompanhamos a acessibilidade oferecida”, garante a presidenta Sônia Marta de Oliveira, da Febrapils.

Ela também afirma que muitas emissoras de TV que fogem às normas alegam que a janela não ficaria esteticamente adequada e agradável aos olhos. “Infelizmente, a comunidade surda e a categoria dos Tradutores e Intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (TILS) às vezes precisam usar a força da lei e acionar o Ministério Público para que as regras sejam seguidas”, lamenta. “Para a pessoa com deficiência física, pensa-se muito em questões arquitetônicas como rampas, mas no caso do surdo é necessário respeitar seu direito linguístico. Ele deve ter a presença de um tradutor e intérprete em qualquer situação em que a comunicação não seja efetiva”, defende.

Como e onde o surdo se informa?


Felipe Barros, empresário:
“Prefiro me informar pela internet e redes sociais. Surdos usam muito Facebook, mas só os que dominam melhor o português como eu. Quando publicam em Libras, aí já facilita muito”.

Professora Sônia Pessoa: “O acesso à informação realmente é um dos grandes desafios para a comunidade surda, que fica afastada do processo midiático. As emissoras de rádio, por exemplo, não possuem ainda uma ferramenta ou recurso para transcrição do áudio, tornando-se um veículo inacessível. Não creio que haja um lugar específico, mas a internet potencializa a criação de grupos de pessoas surdas, na tentativa de viabilizar comunidades em ambientes digitais para facilitar esse acesso. Já acompanhei alguns, tanto abertos quanto fechados”.

Ademar Alves, coordenador social da Feneis: “Uso muito o grupo de informações para surdos de BH do WhatsApp. Acompanho vários youtubers surdos, como Gabriel Isaac e Beto Castejon, mas esses são mais de entretenimento. Gravo muitos vídeos para o canal do Grupo Feneis e quero ter o meu próprio em breve. A revista da Feneis era muito legal, mas foi descontinuada em 2012 por falta de verba do governo”.

Regiane Pereira, auxiliar de administração: “Recebo muitas notícias pelo WhatsApp e peço para minha família me explicar. Às vezes tenho a ideia de ver um vídeo no Youtube sobre algum assunto e entender melhor, mas sou eu que vou lá e procuro”.

Tales Douglas, ator e comediante: “Ao utilizar o Facebook, Google, Gmail e outros, através da leitura de informações nas redes sociais, estaria informado de tudo na vida diária. Mas prefiro o aplicativo DW News (notícias nacionais e internacionais) para visualizar com detalhes, compreender e reconhecer as situações cotidianas”.

Professor Renato Calixto: “As mídias sociais que comportam vídeos são os recursos mais utilizados pelas pessoas surdas para se informar, tendo em vista que tais informações podem ser difundidas em Libras”.

Nos últimos anos, algumas emissoras televisivas passaram a oferecer acessibilidade comunicativa para os usuários da Língua Brasileira de Sinais, como a Rede Minas. Além do Repórter Visual, telejornal que leva informações do país e do mundo para a comunidade surda (produzido pela TV Brasil), o quadro Acessibilidade do Jornal Minas também disponibiliza janela de Libras – ainda que quinzenalmente. Exibido desde março de 2017, tem a proposta de levar conteúdo para informar e ao mesmo tempo gerar o sentimento de representatividade, segundo a produtora e repórter Andreza Brito. “Não é justo falar sobre pessoas com deficiência se uma parcela desse grupo não teria de fato acesso a esse conteúdo. Por questões de administração pública, não tínhamos intérprete entre os funcionários e nem recursos para a contratação, então no ano passado encontramos uma voluntária”, conta.

Sabrina Rocha, também intérprete na faculdade de Regiane Pereira, foi a profissional escolhida pela Rede Minas. “Eu recebo o material, estudo o texto durante uma semana, pesquiso o vocabulário e começo a pensar em uma tradução. Quando vou para o estúdio, treino e depois gravo com o áudio da matéria tocando simultaneamente. Para contrastar com o cenário, costumo usar uma camisa caramelo ou cinza”, diz. “Já aconteceu algumas vezes de gravarmos comigo dentro da própria reportagem e não na janela. Também faço o contrário, a interpretação de voz do que o surdo fala em Libras, dependendo do caso”, completa. Ainda sobre o processo de produção da janela, Andreza explica que é colocada uma TV de retorno no estúdio para Sabrina acompanhar e, depois de tudo filmado, a editora junta a gravação com a matéria em um único vídeo e faz os ajustes necessários.

Intérprete Sabrina Rocha grava janela de Libras para o quadro quinzenal Acessibilidade do Jornal Minas, no estúdio da Rede Minas (Foto: Andreza Brito)

A TV Ines é a única da América Latina totalmente dedicada aos surdos. Criada em 2013 em uma parceria entre o Instituto Nacional de Educação dos Surdos e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, é subsidiada pelo MEC e disponibiliza conteúdo audiovisual 100% acessível em Libras. Em formato de web TV, fica no ar online 24 horas por dia via site e aplicativo, com uma vasta grade de programas dos mais diversos temas. O telejornal bilíngue Primeira Mão é oferecido semanalmente, contextualizando as principais notícias nacionais e mundiais para o público surdo, também com legenda e locução. Informações de acontecimentos mais urgentes são passadas por meio dos boletins. O informativo sobre o crime de Brumadinho, do dia 29 de janeiro de 2019, tem aproximadamente mil visualizações até o momento.

Apesar de ser referência para algumas pessoas surdas, nota-se que o acesso ainda é limitado. “Gosto muito da TV Ines, que tem um jornal completo para a gente e explica até sobre saúde. Mas como o surdo que não tem internet ou mora no interior faz para assistir? Queria muito que eles estivessem na televisão mesmo, por exemplo um botão automático no nosso controle para acessar, tipo Netflix”, sugere Ademar Alves. A professora Sônia reconhece a iniciativa, mas acredita que não é suficiente para dar conta do grande universo informacional em que vivemos hoje. “Temos um verdadeiro arsenal de notícias, memes e imagens. A velocidade da informação no que chamamos de Era da Conexão já é um grande desafio para qualquer pessoa sem deficiência, qualquer ouvinte. Para alguém com o impedimento de um dos sentidos, é quase como viver dentro de um turbilhão em busca de uma informação que seja segura e confiável, muito mais do que todos nós”, opina.

O lema das pessoas com deficiência “nada sobre nós, sem nós” é reforçado na prática pela TV Ines. Todos os apresentadores são surdos, como a âncora e repórter Clarissa Guerretta, que perdeu a audição aos dois anos de idade. Formada em Letras e pós-graduada em Libras, ela comanda boa parte da programação e já fez grandes coberturas como a da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 2014. “Minha rotina é bastante corrida, mas poder levar um jornalismo de qualidade à comunidade surda é muito gratificante. Falta acessibilidade nos principais jornais, principalmente interpretação das notícias em língua de sinais”, declara.

No processo de produção do Primeira Mão, a apresentadora do jornal recebe da equipe o roteiro em português e traduz para Libras. “Fazemos um balanço dos episódios mais relevantes da semana e passamos aos nossos telespectadores de uma forma direta. Os boletins são fatos que acabaram de ocorrer”, esclarece. Acerca de Brumadinho, Clarissa conta que a equipe está sempre alerta aos principais acontecimentos e se certificou da veracidade de todas as informações sobre o crime ambiental. “Nesse caso específico, tomamos ainda mais cuidado na apuração antes de propagar a notícia da tragédia”, conclui.

Clarissa Guerretta nos bastidores da gravação do jornal Primeira Mão (Foto: TV Ines)

Tecnologia a favor da comunicação inclusiva

Felipe Barros precisou levar sua esposa ao hospital de madrugada e teve dificuldades na comunicação. O empresário e a fisioterapeuta Raiane Gontijo, também surda, mal conseguiram falar sobre os sintomas para os médicos. O casal, portanto, não recebeu a assistência adequada. “Não houve nenhum esforço nem paciência para se comunicar comigo. Ainda ficavam perguntando porque eu não levei minha família. Só podia entrar com um acompanhante e eu queria que fosse o meu marido”, desabafa ela. Esse tipo de situação é recorrente na vida da pessoa com deficiência auditiva. “Fico muito triste e preocupada. A falha poderia ter tido uma complicação maior e mais grave”, destaca. Ele resolveu transformar o episódio em uma solução positiva para toda a comunidade surda.

Assim surgiu a ideia de criar a SignumWeb, que funciona como um Uber de acessibilidade comunicativa. A plataforma online disponibiliza intérpretes de Libras em tempo real por videoconferência – via computador, smartphone ou tablet – principalmente para empresas que querem oferecer essa inclusão. Com um valor tabelado pago pelos minutos utilizados, a comunicação sem barreiras é possível em qualquer lugar em que o surdo estiver. “Facilita muito a comunicação em todos os locais e ocasiões. Basta chamar o intérprete e todo o diálogo entre surdo e ouvinte ocorre naturalmente”, orgulha-se. 

Felipe Barros e Raiane Gontijo fazem o sinal universal das línguas de sinais “amo você” no totem acessível da SignumWeb, na Drogaria Araujo (Foto: Renata Rocha)

Em 2018, Felipe ganhou o prêmio “Empresa Inclusiva” na categoria microempreendedor com deficiência, do Governo do Estado de Minas Gerais. A Drogaria Araujo do Anchieta Garden Shopping e o Hospital Urológica, em Belo Horizonte, já oferecem um totem da SignumWeb, com webcam e as ferramentas necessárias para a comunicação. Sem usar inteligência artificial, o site conta com intérpretes reais para não modificar o sentido de cada frase traduzida para o português. O aplicativo para Android e IOS já está sendo desenvolvido pelo Sebraetec-MG, com previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano.


* Entrevistas feitas com intérprete de Libras (de acordo com a preferência do entrevistado) *

Renata Rocha

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A reportagem Acesso à informação para quem? Surdos enfrentam dificuldades para acompanhar notícias é resultado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Jornalismo com ênfase em Multimídia do Centro Universitário Una – finalizado no primeiro semestre de 2019. Com autoria de Renata Rocha Mendes Ferreira, a orientação ficou por conta do professor Roberto Alves Reis.

Após um período estagiando na área de comunicação da SignumWeb, plataforma de videoconferência em Libras, a convivência com a comunidade surda e suas lutas trouxe a vontade de continuar esse trabalho de alguma forma. Percebendo a falta de acessibilidade comunicativa diária enfrentada pelas pessoas com deficiência auditiva, a matéria tem como objetivo conscientizar outros ouvintes e profissionais da imprensa sobre a importância e urgência de oferecer uma mídia mais inclusiva.

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Reportagem: Renata Rocha
Fotos, vídeos e arte: Renata Rocha/colaboração: Andreza Brito, Caio Gomes, Marcelo de Freitas, produção TV Ines, Sônia Pessoa e Victor Cabral
Edição: Renata Rocha
Diagramação: Jeferson Siqueira e Renata Rocha
Desenvolvimento web: Jeferson Siqueira
Interpretação em Libras: Sabrina Rocha
Produção e edição de vídeo: Bruno Rocha
Estúdio: Núcleo Audiovisual NAV - Una Liberdade
Orientação: Roberto Alves Reis
Agradecimento: Bruno Rocha, Carolina Lais, equipe SignumWeb, Piedra Magnani, Sabrina Rocha, Valesca Rennó, Victor Cabral e entrevistados